“Entramos na crise da humanidade sem ter conseguido alcançar a Humanidade; não vemos o todo, o que vemos, no máximo, são alguns fragmentos do grande problema”
(Morin, p. 32).
Por Leão Serva*
O autor deste livro tem mais de cem anos. Nasceu na França em 1921, pouco depois da Primeira Guerra Mundial. Viveu o século mais violento da história, até então, e segue testemunhando o que parece vir a ser o novo recordista. Sua trajetória é exemplar de muitos dos dramas que marcaram a história da humanidade.
Nascido Edgar Nahoum, ele até hoje usa como sobrenome o “nom de guerre” adotado na Resistência Francesa à invasão nazista, para esconder a identidade judaica. É filho de imigrantes judeussefarditas, descendentes daqueles que foram expulsos da Espanha em 1492, viveram em Tessalônica, na Grécia sob domínio turco e, no começo do século XX, foram novamente empurrados para longe pelo antissemitismo, encontrando asilo na França. Nasceu sob a crise dos anos 1920; viveu a quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, e suas terríveis consequências econômicas e políticas espalhadas pelo planeta, especialmente na sua Europa, onde açulou nacionalismos e fez crescer a expressão eleitoral da extrema-direita. Foi na ressaca da quebradeira geral que os nazistas tiveram um terço dos votos na Alemanha e foram chamados a compor governo em 1933, enquanto uma onda conservadora e autoritária varria a Europa.
Morin viveu e lutou na Segunda Guerra Mundial e acompanhou os conflitos posteriores: a Guerra de Independência da Argélia, as guerras de Coreia, Vietnã, Afeganistão, ex-Iugoslávia (especialmente na Bósnia), Golfo 1 e 2, além das mais recentes no Oriente Médio e na Europa Oriental, tornando-se um privilegiado analista dos cenários da geopolítica internacional, que ele compreende como poucos.
É nessa condição que, em novembro de 2022, ele se volta para a guerra da Rússia contra a Ucrânia para alertar contra o risco de o conflito se tornar planetário (uma profecia que desde então parece se realizar, com a crescente participação, ainda que indireta, de Estados Unidos, Inglaterra, China, Coreia do Norte e Irã): “[...] devo relembrar minha experiência com radicalizações que desencadearam os piores tipos de atrocidades de guerra e terminaram com os mais trágicos resultados” (p. 42).
Para tanto, com o espírito de quem observa o cenário global e pensa sob a perspectiva longa do tempo histórico, ele escreve De guerra em guerra com o objetivo de elencar os diversos elementos constantes dos processos bélicos, como resume a partir da página 30: “histeria”; “mentiras de guerra”; “espionite” (uma espécie de paranoia coletiva que enxerga suspeitos em toda parte); “criminalização do povo inimigo”. Esses elementos levam à “radicalização dos conflitos”, em um processo a que ele assistiu diversas vezes ao longo da história e vê se repetir no cenário em torno da guerra entre Rússia e Ucrânia. Para expor como esse processo se constrói, ele cita diversos exemplos, muitos de sua experiência pessoal, de como ao longo da Segunda Guerra Mundial as forças aliadas cometeram atrocidades contra a população civil alemã:
Enquanto era adido militar numa missão do Estado-Maior do Primeiro Exército, comandado pelo general Lattre de Tassigny, fui a Pforzheim [sudoeste da Alemanha], onde senti um horror que rapidamente refreei, dizendo a mim mesmo: “É a guerra”. De fato, em fevereiro de 1945, três meses antes da capitulação de uma Alemanha já vencida, a pequena cidade de Pforzheim foi totalmente destruída por um raide de 377 aviões bombardeiros da Força Aérea Real britânica. Oitenta e três por cento das edificações foram demolidas; cerca de 17 mil civis, um terço da população, foram mortos, e outros tantos ficaram feridos. (p. 22)
Em seguida, ele cita diversos outros exemplos até mais atrozes. E conclui:
Não existe qualquer dúvida de que, durante a Segunda Guerra Mundial, os crimes de guerra perpetrados pela Alemanha nazista contra judeus, ciganos e populações civis tomadas como reféns e fuziladas foram crimes de guerra [...] Entretanto, nada nos impede de pensar, retrospectivamente, que os pesados bombardeios sobre as cidades alemãs e sua população civil, sem que houvesse um objetivo militar preciso, constituem crimes de guerra sistêmicos. (p. 24-25)
Seu ensaio é tão atual que ao longo do texto menciona o processo de radicalização do conflito entre Israel e os palestinos, que cerca de um ano depois chegaria a uma espécie de paroxismo depois do ataque sanguinário do Hamas a alvos civis dentro do território de Israel, em 7 de outubro de 2023, e da reação de Tel Aviv, que atingiu contornos de massacre. (Quando eu estava para terminar este texto, em 13 de abril de 2024, o Irã disparou centenas de drones e mísseis em direção ao território israelense, no primeiro ataque direto da república islâmica a Israel em sua história, ultrapassando um limite que pode alterar a dinâmica da geopolítica no Oriente Médio.)
Ciente da influência que conquistou como intelectual independente, acostumado a desafinar os coros maniqueístas, Morin conclui este livro com um plano para as negociações de paz entre Rússia e Ucrânia. Não sem antes refutar as acusações daqueles que defendem a guerra – muitos por se beneficiar dela, outros por serem vítimas dos distúrbios que ele aponta na psicologia de massas –, de que a defesa do fim do conflito seria uma espécie de capitulação à agressão de Vladimir Putin, consolidando a vitória de seus métodos expansionistas. Como vacina, Morin menciona outras negociações anteriores das potências ocidentais com tiranos possivelmente piores do que o ditador russo: “Será impossível negociar com um déspota? O Ocidente já negociou com Stálin e Mao, e hoje negocia com Xi Jinping. Volto a dizer que Putin é um déspota capaz de realismo”. Atingir um entendimento entre Rússia e Ucrânia, ele diz, significará evitar que a permanência da guerra a faça se espalhar na forma de um novo conflito mundial que, vaticina, será pior que os anteriores.
As reflexões de Morin estão amparadas em uma intensa experiência em torno de fatos históricos, com os quais ele supera as ilusões causadas pela cobertura jornalística dos acontecimentos, sempre exposta à desinformação decorrente de seu método. Como o observador próximo que, por ver as árvores, não enxerga a floresta (na reflexão de Ortega y Gasset), as notícias não deixam ver a história; ao contrário, o sistema das notícias encobre a lógica profunda que está por trás da cortina de novidades. O lento movimento das placas tectônicas da história não pode ser apreendido por quem observa a aparência de estabilidade na superfície. O escritor americano Robert D. Kaplan, em Balkan Ghosts (1993), cita sua admiração pela capacidade do dissidente iugoslavo Milovan Djilas de “estar sempre certo”, “ser capaz de prever o futuro”, que atribui ao fato de ele “ignorar os jornais diários e pensar apenas historicamente”. Como Djilas, Morin está longe das árvores, por isso compreende o bosque.
Há três guerras em curso, explica Morin: (a) a guerra civil entre a Ucrânia e as províncias rebeldes com população majoritária russa, iniciada em 2014; (b) a guerra entre Rússia e Ucrânia, iniciada com a invasão russa em fevereiro de 2022; e (c) uma guerra entre os Estados Unidos e a Rússia pela hegemonia planetária, que foi a causa remota da invasão russa e é também a causa do patrocínio americano que garante a capacidade dos ucranianos de enfrentar o exército russo, muito mais poderoso.
Essa constatação não aparece nos relatos da imprensa, uma vez que o jornalismo não é um meio bom para a divulgação de histórias complexas, ele depende sempre de uma redução dos enredos a cenas maniqueístas, de bons contra maus. Por isso mesmo, as narrativas sobre o conflito têm sempre os russos no papel simplista de invasor da Ucrânia e os ucranianos como vítimas do tirano Putin.
Saem as questões complexas, como o fato de que a Crimeia, origem do conflito entre os dois países em 2014, é uma província russa concedida à Ucrânia pelo governo soviético de Nikita Kruschev, em 1954, logo após o trauma dos sombrios anos sob Josef Stálin (1927-1953), que, entre outras terríveis ações, deportou da província toda a população tártara, que ali vivia desde a Idade Média. Nos anos 1950, Ucrânia e Rússia faziam parte da mesma União Soviética, de alguma forma tanto fazia a Crimeia ser parte de uma república ou de outra, já que ambas integravam uma unidade maior. Quando terminou a União Soviética, em 1991, os dois países passaram a ser repúblicas separadas; mais ainda, depois de 2014, passaram a ter interesses geopolíticos antagônicos (a Ucrânia buscando sua união com a aliança militar ocidental Otan e com a União Europeia), a posição estratégica da região voltou a ser um ponto de discórdia, uma área de disputa. Como já ocorrera antes, no século XIX, a Crimeia se tornou de novo palco de disputa, de mais uma dessas guerras que se repetem sempre no mesmo lugar. Essa história complexa não cabe no enredo da imprensa.
Também submergiu no noticiário a presença de grupos nazistas na Ucrânia, um dado bem conhecido no Brasil, onde o símbolo dos extremistas da nação eslava esteve presente nas manifestações de direita, tanto no enredo da queda de Dilma Rousseff quanto no governo Bolsonaro e nas tentativas de golpe que marcaram sua derrota. Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, a imprensa submeteu essa questão ao enredo maniqueísta: entre “a vítima Ucrânia” e a “agressora Rússia”, não cabem referências aos grupos nazis ucranianos. Hoje esses extremistas são citados apenas como se fossem uma criação folclórica de Putin para açular a opinião pública de seu país.
A redução do noticiário a esquemas simplistas e a submissão de notícias ao destaque maior de outras, fazendo que o leitor não apreenda sua importância, são dois procedimentos clássicos da desinformação essencial do jornalismo, como aponto em Jornalismo e desinformação.¹
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O livro que você tem nas mãos foi escrito em novembro de 2022, quando a guerra tinha pouco mais de seis meses e, embora não parecesse ter um fim iminente, tampouco se poderia prever que fosse perdurar tanto e, mais ainda, atrair a participação de mais potências militares, sugerindo realmente a sua mundialização.
Morin previu tudo isso, mostrando mais uma vez como suas referências complexas, baseadas na história, de que ele é uma testemunha, são fator fundamental tanto para uma análise mais sutil e livre do maniqueísmo que a superficialidade traz às redações e seus leitores quanto para uma impressionante capacidade preditiva – o que faz de De guerra em guerra uma referência necessária e atual.
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*Leão Serva é mestre e doutor em Comunicação e Semiótica. Como correspondente do jornal Folha de S.Paulo, cobriu a Guerra da Bósnia (1992-95) e outros conflitos. Atual diretor internacional de jornalismo da TV Cultura e correspondente em Londres, é autor de A fórmula da emoção na fotografia de guerra (Edições Sesc, 2020)
O texto acima é o Prefácio do livro De Guerra em Guerra, de Edgar Morin.
¹Submissão ocorre quando um fato “embora noticiado, tem uma edição que não permite ao receptor compreender sua real importância [...] a edição não confere o destaque merecido diante de sua importância histórica ou política do fato”. Leão Serva, Jornalismo e desinformação, São Paulo, Senac, 2001, p. 66.
Veja também:
:: trecho do livro